quarta-feira, 30 de julho de 2014

O fim do corredor

Dois olhos negros - Lenine

Ela jurava estar distraída, fingindo ver os desenhos das crianças pelas paredes do colégio. No local, estavam várias pessoas conhecidas conversando. Ela só queria um momento de paz, longe daquela barulheira e,claro, pretendia fugir do momento em que o Cara chegasse, se viesse. Veio.

Ela estava longe, muito longe, no fim do corredor, lendo e rindo da criatividade tão infantil daqueles meninos, tentando não transparecer a alegria óbvia causada pela presença do imã humano. O riso, é claro, era alargado pelo fato presente e sentido. Consentido. Ele chegou, cumprimentou a todos e sentou-se na escada, apenas para esperar seu momento de trabalho. Ela, fingindo-se alheia, por enquanto.

Eis que decide que era o momento de aparecer, então caminha lentamente pelo corredor, desde seu final até o início, desde o escuro à claridade. Enquanto caminha, olha para a frente e só consegue ver um ponto, ainda que fingisse olhar para o nada, ainda que atuasse como se prestasse atenção à presença de todos, menos a dele. Cruel, pois tudo o que o Cara via era o corredor, ainda que uma pasta cheia de textos estivesse em seu colo. Cruel, pois o Cara pode morrer sem saber que aquele andar desde o fim do corredor era exclusivamente em direção a ele, e foi movido pela força magnética que só ele possui.

Ela sabia que o Cara a olhava, sabia que ele prestava atenção a tudo, mas preferia mentir para si e ignorar o que ambos sentiam. A única garantia que tinha era a do olhar no fim do corredor... O olhar que penetrou todo o corpo, atravessou até as paredes do colégio, desmoronou um ser inteiro, construiu outro e dá forças à esperança da negligência que se apoderou dela. Tomara que o fim do corredor não seja o fim definitivo do caminho. Tomara que todos os caminhos se reformem, se entortem, se alinhem, para que ela re-caminhe de volta para ele e vice-versa.

"É como se a vida terminasse ali, no fim do corredor" - Lenine

domingo, 20 de julho de 2014

Amortecedores silenciosos


Amor-tece-dores
Amor
mor
te
tecer
dor
tecedor
tecer
dores
ser dores
dores
dor
rés

Silenciosos
silêncios
silêncio
silencio
ocioso
ossos
os
nós

maio de 2013

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Contra a corrente

Fevereiro é sempre uma festa: axé, futebol, férias, carnaval... Andavam nas ruas movimentadas, obstinados a enganar o calor do Rio de Janeiro com um simples sorvete. Enquanto caminhavam, a banda passava. Se a sorveteria estava do outro lado da rua, não havia outra saída: atravessar a rua, atravessar a multidão. Eram corajosos: foram.
Gente bêbada, suada, cheirando como urina, como sexo, como prazer e diversão. Ah, que vida boa! Quem não gosta de suspender todos os problemas e dar boas risadas e dançar e cantar e beber e beijar e tudoaomesmotempo? Quem não gosta de viver? Eram dois inconsequentes caminhando contra a corrente de pessoas que arrastavam mais pessoas, que arrastavam mais pessoas. Música tocando, uma batucada incessante. Andavam e um rapaz puxou o braço dela, que olhou para baixo e sorriu daquele momento nunca antes esperado. Agarrou-se a seu companheiro e seguiram até o destino que parecia tão longínquo. A banda empurrando, puxando, cantando, beijando, bebendo e eles só podiam rir. A banda estava o tempo todo certa fazendo aquela pressão nos corpos dos dois caretas certinhos e comprometidos. Metidos! Quem ousa estar em casal no carnaval?
Chegaram à sorveteria e riram e se abraçaram e pediram o que deviam pedir. Sentaram-se, deliciaram-se e a banda passou. Porém, antes a banda tivesse passado e carregado os dois no caminho da felicidade tão superficial que puderam ver naquele momento. Antes fossem leves e desprendidos. Antes fossem como a multidão absorta nos valores da banda e sucumbissem à festa da carne. Não se trata de pecado, é permitido. Não se trata de esquecimento momentâneo, mas de celebração do prazer de viver. Quem precisa revelar as dores que estão em casa, no travesseiro e no espelho quando se deve ser feliz? Quem precisa andar contra a correnteza de pessoas? Vamos simplificar: deixem-se levar, deixem-se separar. Um dia, quem sabe, a Deus dará, haja um encontro no meio da multidão embriagada, na madrugada, em fevereiro. Depois de devidamente aproveitada a vida, talvez haja ainda algumas festas a celebrar, mesmo que sem sorvete. Talvez ainda reste algum resquício de coragem em vidas que apenas seguem.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ensaio e erro - Futuro do presente

Quedate allí - Georgina

Do not move! - Dizia a placa vermelha que fiz questão de ler em inglês. Se dessemos um passo que fosse, seria o fim. Estávamos bem, tranquilos e insuperáveis em nossas zonas de conforto, no conforto de nossos distantes lares, lares antes protegidos por nós mesmos, por trás de tantas portas blindadas e invisíveis. Tantos tiros foram dados e nós, imunes, sequer imaginávamos que iríamos nos mover.
Ensaiamos um passo, que mais parecia um balé. Tanta coisa dita em tão curto espaço de tempo - e parecia anos de caminhada juntos, parecia que as pegadas eram firmes no chão, mal podíamos calcular danos. Era uma urgência em se ver, se tocar, quem sabe se amar... Era tanta vontade de apostar e depositar a vida em um mísero passo que erramos, erramos, erramos no ensaio. - Era ensaio! Era para haver erro! Era para incalcular! 
Porém, mais fácil é culpar o tempo e a mudança, vilões de um enredo sem fim. Esses agentes se movem juntos, não percebe? Não existe ensaio para o tempo, não existe uma pré-mudança, você e eu somos o processo em si. Não vamos saber quem seremos no presente, já somos conjugados no futuro do presente, já somos consumados num tempo e num espaço que não dá margem para nenhuma prévia do que será. Nossa prévia é passada, construída num pretérito imperfeito, indicativo de evento inacabado.
E ouvi dizer: Run! - Vozes por trás da placa me avisavam que, apesar de saber que qualquer passo mataria, era preciso correr para tentar, agarrar a oportunidade. Procurei ouvi-las, puxei sua mão. Demos o passo, depois de um ensaio cheio de erros. Por trás da placa, o inesperado: um buraco, uma cova. Só eu cai, porque me jogo, porque me movo em direção às coisas que quero. Meu medo do mundo se foi no pretérito imperfeito. Seu medo ficou no presente. Sei que somos o futuro do presente e do pretérito, mas don't move anymore... Eu quero lembrar do ensaio. Quero lembrar da minha nudez. Quero lembrar que me despi sem tirar minhas roupas. Quero lembrar que andei sem dar um passo sequer e que caí na cova, que morri de novo. Don't move, você não tem que morrer, só se reconstruir. Voltemos, então, às zonas de conforto, aos lares. Já estamos distantes, garanto que nada vai doer tanto. Foram tantos os tiros dados e nós, ainda nos sentindo imunes, mesmo depois de um ensaio de merda, sequer imaginávamos que iríamos nos mover outra vez.

21 de janeiro de 2014